DEVERIA SER A
FOME DE TODOS!
Recebemos um email de Carla
Romualdo, que retratou como passou
«o mês de Agosto». Fomos solidários, ficamos a saber que " somos Iguais como Somos e diferentes quando queremos Ser "... Pensamos durante certo tempo.
Mesmo sendo todos iguais e parte de um mesmo Todo! O que se apresenta é um retrato
UM RETRATO NADA FANTÁSTICO, MAS VERDADEIRO!
« Passei o mês de Agosto a ir a um hospital todos os dias, e em cada um desses dias vinha um
enfermeiro ou auxiliar ter consigo à porta do refeitório para lembrar que não
podia entrar ali.
Eu ia de braço dado com o meu pai e só queria garantir que ele chegava inteiro à cadeira, e preparar-lhe a comida, como se faz com as crianças, tirar as espinhas do peixe, descascar-lhe a laranja. Com bons modos, mas sem deixar margem para protestos ou pedidos especiais, apareceu sempre alguém para mandar-me sair porque só os doentes
podem entrar no refeitório, as visitas estão proibidas de fazê-lo.
A proibição justificava-se por razões de organização interna,
espaço, ruído, etc. A razão principal só se sabe ao fim de alguns dias a
passear pelos corredores: enquanto puderam entrar no refeitório, era frequente
as visitas comerem as refeições destinadas aos doentes.
Sentavam-se ao lado dos
pais, avós, irmãos, maridos ou mulheres e iam debicando do seu prato, ou
ficando com a parte de leão.
À ingénua indignação inicial,
seguiu-se de muitas histórias de miséria que ajudam a explicar como se pode
chegar aí. Só quem, quem constatou, nunca a passou, demora a entender que a
fome pode roubar tudo a um ser humano.
Rouba-lhe a solidariedade até
com os do seu sangue, a dignidade, o respeito, tudo aquilo que o faz ser gente.
E pelo retrato que presenciou nesse hospital público do Porto, há fome nos
nossos hospitais. Doentes que pedem ao companheiro do lado o pão que lhe
sobrou, a laranja que não lhe apeteceu comer, a sopa que deixou a meio. Há quem
diga que prefere comer um pão simples, ao lanche, para esconder na fímbria do
lençol o pacote da manteiga ou da compota para mandar para os catraios lá de
casa. Há quem não anseie pelo dia da alta porque, pelo menos ali, come as
refeições todas. Há quem vá de mansinho à copa perguntar se dos outros
tabuleiros sobrou alguma coisa que lhe possam dispensar.
Fica-se com um nó na garganta
com tudo o que se vê e vira-se a cara para o lado com vergonha. Vergonha por
ser parte disto, por não ter gritado o suficiente, por não ter sido parte da
mudança que se reclama há tanto.
E depois estão os caixotes de
lixo remexidos pela noite fora, as filas para as carrinhas de distribuição de
alimentos, o passeio do albergue cheio de gente, gente que vagueia como
sonâmbula, que discute por uma moeda de vinte cêntimos ou por um portal onde dormir.
E estão? A nossa maior vergonha? As cantinas escolares que têm de abrir nas
férias para garantir a única refeição diária de tantas crianças, as mesmas
cantinas que sabemos que estarão encerradas à hora do jantar.
A fome reduz-nos à biologia,
despoja-nos de qualquer ideal, impede-nos de dizer não ou de levantar um dedo
acusatório, e será pela fome que, como num passado não tão remoto assim,
procurarão dominar-nos.
Quando se fazem campanhas
eleitorais distribuindo benesses sob a forma de electrodomésticos, medicamentos
que a miserável reforma de um velho não pode comprar, ou mandando matar porcos
para apaziguar a fome nos bairros sociais, o que aparece mascarado de acção
solidária não é mais do que a manipulação despudorada da necessidade alheia,
necessidade a que, aliás, estas pessoas foram sendo condenadas, por décadas de
injustiça social, corrupção, gestão ruinosa, e todos os que nunca fizeram nada,
mas que conhecemos demasiado bem mas a que nem por isso somos capazes de pôr
fim.
E se nos distrairmos ainda
acabamos a apontar o dedo aos excluídos, a fazer contas ao rendimento mínimo do
vizinho, a aplaudir o corte no salário, na pensão, no subsídio, como se a
igualdade se fizesse rebaixando, como se a solução fosse difundir a miséria em
vez de democratizar as condições para uma vida digna.
Confessou que sentiu o
imperativo moral de pagar uma refeição a quem lhe pedia, mas tinha dificuldades
em lidar com essa pessoa. Porque quero que fique claro que a relação entre nós,
se pode chamar relação, apenas deve ser de respeito mútuo e, sendo certo que em
qualquer momento futuro as nossas posições podem inverter-se, temos, um para com
o outro, a mesma obrigação.
Mas sentiu-se sempre
desconfortável com a mendicidade do outro, com a sua posição de aparente
debilidade, com a sua ilusória superioridade. A fome de uns é a fome de
todos e já é hora de a sentirmos assim, mesmo que não nos aperte o estômago,
mesmo que não nos roube a nossa dignidade.»
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